Monday, March 05, 2007

entrevista 08.2006

sal., UM MITO PROVINCIANO



A sua arte é um combate, a sua arma a transdisciplinaridade. Agitando a bandeira da escatologia – entre o divino e o detrito –, sal. aterroriza curadores e galeristas, eleva a província a berço da subversão e alimenta-se de um pão que é amassado muito para além do bem e do mal.

Joana Lima: sal. é o nome pelo qual te dás a conhecer. É algum epíteto de pureza na cena artística nacional?
sal.: O nome nasceu acidentalmente. Numa noite, ao assinar um texto, um gatafunho com o qual assinei assemelhava-se a "sal.". Desde aí assim ficou. Ao assinar assim os trabalhos, foi a forma como me começaram a chamar também.
JL: Deve deduzir-se daí que te interessa mais a forma do que o conceito? Ou a forma é o próprio conceito da tua arte?
sal.: Ainda que dependa bastante dos trabalhos, a forma normalmente é delegada para segundo plano. Tenho um não-método punk que me faz pôr a urgência dos conteúdos muitas das vezes à frente da maneira como são apresentados. E se sempre me interessa o conceito, o contrário nem sempre é certo
JL: Fotografia, videoart, cinema, poesia, teatro, música: os teus projectos abarcam diversas áreas. Esta multidisciplinaridade relaciona-se com diletância, com liberdade, ou com urgência?
sal.: Penso que com todas. A ideia de transdiciplinariedade ou multidisciplinariedade permite-me que possa escolher a maneira mais "certa" para focar o que quero sem que me prenda a uma delas. Nesse caso, sim é libertário, é uma escolha. É uma forma de não me cansar das coisas, aliado a que certas ideias se expressam melhor em texto e outras são mais interessantes de ser ditas em cinema ou por sons.
JL: A tua estética transpira intimidade. É a nudez e a transfiguração da tua imagem noutros corpos o caminho para a atingir? Pretendes atingi-la?
sal.: Neste momento até estou com um projecto que é exactamente vários corpos se tornarem no meu, numa caricatura feita apenas por umas barbas postiças. Desde sempre trabalhei o corpo, porque na realidade é o único que temos. Dessa forma, centrei o meu trabalho fotográfico e de cinema num antropomorfismo, de forma a ele também poder ter corpo. Por outro lado, acredito que só despindo-nos de certas coisas podemos falar de outras. O que quero é em primeiro que o meu trabalho seja livre. E, em segundo plano, que eu o seja.
JL: Por outro lado a música que crias, denotadamente noise, é suficientemente caótica para se poder desvendar um sal. que apela à desconstrução. A unidade que consegues na fotografia e o niilismo dos eps que tens editado pela Test Tube e MiMi Records, e agora no teu novo projecto Monstars, é uma dualidade propositada?
sal.: Eu não sei se diria caótica. E muito menos niilista. Não consigo dissociar o método ou a ausência deste, detesto o conceito de método, que uso na música e no resto. Penso que a música sofre de estigmas os quais à força têm de ser eliminados. O facto de eu fazer noise ou o que lhe queiram chamar incomodar algumas pessoas não deixa de fazer com que maior parte da música me incomode a mim. Em Finlandês noise e som é uma e a mesma coisa: ääni. E não considero que faça música, muito menos que seja um músico. Construo sons e algumas articulações entre eles.
JL: E o que é te incomoda?
sal.: O que me incomoda, e não só na música, é a mania de quererem tudo polindinho, tudo certo, tudo previsível; as pessoas estarem fechadas ao imprevisto e terem já à partida noções do que é bom/mau; a própria dualidade que as pessoas fazem entre o bom e mau. Se calhar muitas das coisas estão bem fora deste parâmetro
JL: E é fora dessas pré concepções que tu preferes ficar?
sal.: É, porque me permite ter uma relação nova e salutar com as coisas. Logicamente que, por estímulos sociais, estar fora disso implica uma luta. É uma das que travo.

JL: Escolheste Coimbra para viver. Foi um acaso ou está subjacente a essa escolha uma luta pela validação da cultura na província?
sal.: Eu acabo sempre por estar em vários sítios. E tenho estar o mais fora possível das cidades de Lisboa e Porto, porque há muita concentração de coisas e desrespeito pelas pessoas. Neste último mês estive em Coimbra, Leiria, Viseu, Montemor-o-Velho e Vila Nova de Milfontes. As colaborações que faço permitem-me estar em mobilidade, o que me faz com que não esteja muito tempo no mesmo sítio. Prefiro assim.
JL: Como é que percepcionas a recepção das tuas obras pelo público em Lisboa e no Porto? Trabalhas com a nudez e com o ego, isso decerto será polémico.
sal.: A mim continua a preocupar-me o facto de um pénis chocar, e a corrupção, a falta de valores, coisas como a história de Natascha Kampusch ou Guantanamo Bay não chocarem. Portanto, se me cheira a hipocrisia, tenho o problema em parte resolvido. O que é certo é que não o faço por necessidade de choque. Faço-o por uma escolha. E não penso que os corpos choquem tanto assim, já. Os meus trabalhos mais choque serão as colaborações com o Pedro Bastos, em teatro, porque são trabalhos mais viscerais e mais de confronto, mais directos.
JL: A recusa institucional do teu trabalho e o início de um culto underground em torno da tua pessoa parecem-te sinónimos de subversão?
sal.: Espero bem que sim. Não sinto que muito do meu trabalho pactue com poderes instituídos. Vejo o meu trabalho como o de um padeiro, onde com poucos elementos tento fazer algo que possa chegar ao máximo de pessoas e que lhes possa saber bem. Aliás, neste momento, e desde que trabalhei com a Mimi Oka e Doug Fitch [www.orph.us] que estou a terminar uns ensaios chamados Bread Time Stories sobre a figura do pão.
JL: O teu próximo filme envolverá pão e política. É um delírio daliniano ou existe uma consciência social como motor?
sal.: O pão, para mim, é o símbolo máximo de arte. Também pode significar um murro ("levar um pão”), que é o que muitos artistas sabem o que é e pode significar à pressão ("à papo-seco"), de forma que pode ter inclusive várias leituras. A mim, interessa-me, mais que dar respostas, fazer perguntas. Se a pergunta agita e a resposta acalma, então prefiro fazer e que me façam perguntas.


Joana maria
08.2006

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